A hemofilia A (HA) é uma doença hemorrágica hereditária ligada ao
cromossomo X, causada pela atividade reduzida ou ausente do fator VIII da
coagulação (FVIII). Essa doença é o resultado de diferentes mutações no gene do
FVIII. A identificação das mutações patogênicas é importante para o
aconselhamento genético e para a avaliação e tratamento das manifestações
clínicas. Embora inúmeras mutações no gene já tenham sido descritas como
responsáveis pela HA grave (nível de FVIII <1%), moderada (nível de FVIII
entre 1% e 5%) e leve (nível de FVIII entre 5% e 50%), não existiam dados a
respeito na população do Rio Grande do Sul.
Em um recente estudo coordenado pelos Professores
Francisco Mauro Salzano e
Eliane Bandinelli (Departamento de Genética, UFRGS) foram identificadas alterações genéticas
em 36 pacientes hemofílicos graves, 21 pacientes hemofílicos moderados e 55
pacientes com hemofilia leve, todos de diferentes famílias. Todos os
hemofílicos graves apresentaram resultado negativo para a presença das
inversões nos íntrons 22 e 1, mutações mais comumente encontradas (40-50% e 5%,
respectivamente) em hemofílicos A graves. Todos os pacientes foram analisados
por sequenciamento direto dos éxons. As variações nas sequências foram
verificadas com os softwares Codon Code Aligner e MEGA5.04, para realizar
alinhamentos múltiplos e para analisar a sequência de aminoácidos da proteína
mutante. O software PolyPhen-2 (Polymorphism Phenotyping [1]) foi utilizado
para verificar se as mutações alterariam a estrutura e a função da proteína; o
software SDM (Site Direct Mutator [2]) foi utilizado para verificar se as
mutações alterariam a estabilidade da proteína. O software HOPE (Have yOur
Protein Explained [3]) também foi uma ferramenta utilizada para prever o
efeito das mutações na estrutura da proteína.
O Núcleo de Bioinformática do Laboratório de Imunogenética (NBLI) contribuiu neste
estudo com a localização das mutações
na proteína codificada pelo gene do FVIII. Foi utilizado o programa Pymol para a visualização da
estrutura da proteína e o programa GRASP2 para a representação do potencial
eletrostático na superfície.
Figura 1. Mutações de sentido trocado encontradas nos pacientes hemofílicos graves do Rio Grande do Sul. As mutações coloridas em vermelho são mutações novas e aquelas coloridas em azul são mutações previamente descritas. Esferas amarelas representam íons cálcio e esferas roxas representam íons cobre. A mutação D542G está localizada em um segundo sítio de baixa afinidade com o íon cálcio, o que pode contribuir na afinidade entre domínios, na interface entre os domínios A2 e A3. A mutação S109P, descrita pela primeira vez neste trabalho, está localizada no domínio A1, nos resíduos 108-124, o qual pode conter um sítio de Ca2+.
Modificado de Gorziza et al. 2013.
Figura 2. O efeito da mutação L2297R sobre o potencial eletrostático do FVIII. Na esquerda, está representada a molécula do FVIII, com seu domínio C2 em vermelho. Na direita, acima, está a proteína selvagem L2297 e abaixo, os resíduos mutados estão representados. Note que na estrutura mutada há uma área pronunciada de cargas carregadas positivamente, ausente na estrutura selvagem. Azul, positivo; vermelho, negativo; branco, cargas neutras. Os valores das cargas calculadas variam entre -5 kT (vermelho) e +5 kT (azul). Modificado de Gorziza et al., 2013.
Foram encontradas nos pacientes graves: uma grande deleção, nove
pequenas deleções, cinco pequenas inserções, oito mutações de sentido trocado e
seis mutações sem sentido, das quais treze são recorrentes e dezesseis são
novas mutações, não descritas no banco de dados online HAMSTeRS [4]. Entre
outras mutações de efeito evidente, foram encontradas duas mutações (D542G e S109P)
que podem interferir em sítios de ligação ao cálcio, uma mutação (P2205R) que
pode ser prejudicial à interação entre o FVIII e o fator de von Willebrand
(FvW) e uma mutação (L2297R), que altera a superfície eletrostática da
proteína. Todas essas interações são fundamentais para que a proteína do FVIII
tenha atividade normal. As Figuras 1 e 2 ilustram essas mutações.
Nos pacientes leves, foram encontradas 27 mutações de sentido trocado,
uma pequena deleção, duas pequenas duplicações e três mutações em sítios de
processamento de RNA, sendo que nove dessas mutações não eram descritas em
outras populações no banco de dados HAMSTeRS. As ferramentas de bioinformática
tiveram grande importância para ilustrar o possível efeito dessas mutações na
proteína. Todas as mutações de sentido trocado estão representadas na Figura
3, que mostra a posição e a diferença entre os resíduos mutantes e selvagens da
proteína.
Figura 3. Localização das novas mutações de sentido trocado na proteína FVIII. Mutações ilustradas em vermelho ocorrem em pacientes moderados e as ilustradas em verde em pacientes leves. A cadeia lateral dos aminoácidos selvagens está ampliada e as dos resíduos mutantes esta representada ao lado ou abaixo. Esferas amarelas representam íons cálcio e esferas vermelhas íons cobre. Modificado de Rosset et al., 2013.
A mutação p.Val266Met, está próxima a um sítio de ligação ao cobre,
fundamental para a estabilidade da proteína. Essa mutação foi predita pelos
softwares preditores do efeito de mutações causadoras de doença. Outra mutação
provavelmente causadora de doença encontrada foi a p.Gly304Val, localizada
próxima a um sítio de ligação ao fator X, fundamental para a atividade de
coagulação (Figura 3). A mutação p.Met567Lys provoca uma mudança de carga
nessa posição, podendo causar repulsão entre os resíduos vizinhos, como mostra
a Figura 4.
Figura 4. Na esquerda, está representada a molécula do FVIII ativada, com seu domínio A2 em vermelho. Na direita, acima, a representação da superfície eletrostática do domínio com o aminoácido Met567, selvagem. Abaixo a representação da superfície eletrostática do domínio com o resíduo mutante, Lys567. Próximo ao resíduo mutado há uma grande área com cargas positivas, ausente na estrutura selvagem. Azul, positivo; vermelho, negativo; branco, cargas neutras. Os valores das cargas variam entre -10 kT e +10 kT. Modificado de Rosset et al., 2013.
Todos esses dados contribuem para o melhor entendimento da
funcionalidade e da estrutura do FVIII. A visualização das alterações na
proteína esclarece a relação genótipo/fenótipo, explicando a provável causa da
doença nos pacientes estudados. Para uma leitura mais completa dos resultados e a visualização das figuras em maior resolução, acesse os trabalhos originais:
Gorziza et al., 2013 e
Rosset et al., 2013.
Texto de Roberta Petry Gorziza e Clévia Rosset.
Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGBM/UFRGS).
Editado por Dinler Amaral Antunes.
NBLI - Núcleo de Bioinformática do Laboratório de Imunogenética.
Referências:
1. Adzhubei IA, Schimidt S, Peshkin L, Ramensky VE, Gerasimova A, Bork P, et al. A method and server for predicting damaging missense mutations. Nat Methods 2010; 7: 248-9.
2. Worth CL, Preissner R, Blundell TL. SDM – a server for predicting effects of mutations on protein stability and malfunction. Nucl Ac Res 2011; 39: 215-232.
3. Venselaar H, Te Beek TA, Kuipers RK, Hekkelman ML, Vriend G. Protein structure analysis of mutations causing inheritable diseases. An e-Science approach with life scientist friendly interfaces. BMC Bioinformatics 2010; 11:548.
4. The Haemophilia A Mutation, Structure, Test and Resource Site (HAMSTeRS). Available at: http://europium.csc.mrc.ac.uk/Web- Pages/Main/main.htm (last accessed on 10 January 2013).